O amor não precisa das cerimônias da Igreja para
sagrar-se: ele é por si mesmo divino, pairando acima de todas as maiores
aspirações humanas.
Basta que entre dois corações, pólos de eletricidade
contrária, a centelha transformadora se faça, para que toda uma grande luz
irradie, abrangendo a vida e projetando-se na própria eternidade.
Nascidos em países diversos e distantes,
encontraram-se, divinamente impelidos um para o outro, nesta Babel brasileira
__São Paulo. Raimundo já era casado; Teresa
independente ainda. Como se fossem dois abismos, atraíram-se
violentamente para a mesma desgraça. Raimundo abandonou a casa; Teresa viu-se
expulsa pelos pais...Que importa? O amor paira acima do sangue, muito além das
conveniências sociais. Uniram-se e tiveram a mais vulcânica das paixões humanas
a dourar a miséria pecuniária que logo veio, a colorir de relâmpagos multicores
a infâmia que os invejosos tentavam distender em redor dos seus nomes.
Mas um dia, após vários anos de mútua glorificação
interior, Raimundo __dominado não sei por que destino, arrastado não sei por
que fraqueza de alma __ abandonou-a!
Teresa quis transformar em fios de aço as suas fibras
de mulher apaixonada. Quis e tentou. Resistiram
as fibras por algum tempo, mas, num fortuito encontro em um teatro
qualquer, a paixão derreteu o aço daquelas fibras e a mulher explodiu numa cena
de loucura passional.
___Amigo! Você abandonou-me... Não vou recriminar-lhe
a liberdade dessa ingratidão: eu nunca fui sua esposa. É verdade que por você
abandonei o meu lar tranqüilo, sacrifiquei a minha honra, tive as maldições de
meus pais, cobri-me de infâmias do público... Isto, porém, o que era em face do
amor que lhe consagrava?
Você abandonou-me... fez bem! Os homens são como as
feras: depois de saciados, enjoam-se das vítimas que fizeram. Só a mulher não é
assim, porque só a mulher não se sacia. Não quero recriminar-lhe o direito que
tinha de abandonar-me... Desejo apenas fazer-lhe um pedido: quero passar, em
sua companhia, a tarde de amanhã. Peço-lhe isto pela recordação de todos esses
momentos inesquecíveis de quando vivemos juntos... Peço-lhe isto em nome da
solidão aflitiva em que me encontro só e amargurada...
Acendendo ao pedido, passaram juntos a tarde inteira
do dia seguinte, um buliçoso domingo de calor. Tomaram um carro fechado e
mandaram rodar pelos lugares mais distantes e silenciosos.
Teresa derreara a sua linda cabeça no ombro dele, com
os lábios quase em seus ouvidos, nessa atitude de quem vai fazer confidências.
E foi-lhe recordando o seu romance desde o momento em que se amaram até aquele
instante em que ele fugira sem razão nenhuma. Reviveu os dias de maior paixão,
os sacrifícios suportados, as amarguras curtidas, toda essa trama violenta de
paixões em que o Destino contristara o seu coração de mulher. A sua voz, a
principio, forte, foi-se aos poucos debilitando, nublada por soluços que
tentavam afogá-la. Depois, na violência da sua amargura, já não era mais uma voz humana: era apenas um ciciar de
palavras que passavam entre lágrimas. A narrativa o havia emocionado, porque,
afinal, também ele a amava e a queria ainda e, num momento de irreprimível
ternura, arrastou-a para o seu peito, e violentamente a comprimiu de encontro
ao coração... As bocas procuraram-se com aquela avidez que só a saudade do beijo
consegue despertar nos lábios dos amantes.
Sentiu, porém, que o corpo da amada se abandonava numa
rapidez de queda. Esforçou-se por suste-la e, num solavanco do automóvel,
rolaram ambos do assento. Reergueu-se e colhendo todas as energias de que
dispunham os seus músculos exaustos, tentou fazê-la assentar-se...O corpo da
mulher resistia: os músculos se travavam todos, tombando para traz a cabeça
inerte...
___Chofeur! __toca depressa para uma farmácia!
__gritou Raimundo.
Alguns segundos depois, com a voz violentada pela
comoção, deu outra ordem:
___Pára... para a farmácia, não!... para a Central!
Na sala da polícia, diante dos repórteres, escrivães e
curiosos, o delegado conseguiu apenas esta elucidação consagradora da tragédia:
___O senhor matou-a?
___Sim, matei-a!
___Com que a matou?
___Com amor!
Santiago Ribeiro, Sorocaba 09/11/2011