terça-feira, 28 de agosto de 2012

Dito Historiadô - Uma Viagem às Relações Humanas


Poucos, da atual geração de sorocabanos, desconhecem, pelo menos de tradição, algumas passagens da história de sua própria cidade. De quantas epopeias, fatos, tradições, lendas têm registrado nos livros de nossos escritores e historiadores e destes avivados muitas vezes à memória dos nossos avoengos e, por feliz e rara consequência, saltado dos alfarrábios para os palcos do teatro.
História do Dito Historiadô, peça teatral com texto de Ivone Martins e direção de Rodrigo Cintra, inspirado no livro de Antônio Francisco Gaspar, é um importante mote para o sentido de resgatar à memória sorocabana o registro da nossa história, tendo como pano de fundo o regionalismo, as tradições rurais, a linguística, e sobretudo, um olhar analítico sobre as relações humanas em nossos dias atuais.

O fictício Dito, personagem central da peça, é uma das figuras geradas pela dramaturga do qual giram em torno alguns outros personagens, reais ou não, e que se misturam de uma forma por onde passado e presente nos convidam à uma reflexão sobre o comportamento humano dentro dos grupos familiares, seja ela rural ou urbano, real ou fantasia. Sendo atemporais, denunciam questões como o contexto arcaico do universo sertanejo, adultério, charlatanismo, assassinato, sensualidade e alcoolismo. Pode parecer pesado e indigesto aos nossos olhos assim quem lê de primeira vista, permitindo por vezes deduzir que se trata de uma peça intensamente trágica, dignos de Édipo, de Sófocles. Ora, mas que também não deixa de ter lá sua atração. Porém eu acredito que é muito mais excitante vermos estes delicados flagelos sociais sob a esfera da comédia, sustentada pelos ares do clown, do circo-teatro e do épico-narrativo. Estas questões então deixam por um lado de serem fortes e intensas, para serem leves e humoradas. É a tragicomédia, fonte da qual o próprio Shakespeare, Sartre, Moliere, Lorca entre tantos, já beberam.



A peça começa já com uma pergunta no ar e então um suposto adultério surge discretamente em entrelinhas. A personagem D. Lazinha, mãe do Dito, aparece esbaforida na casa de seu vizinho, o compadre Pedro, padrinho do filho da mesma. Dona Lazinha está angustiada por que seu filho havia dias estava em estado catatônico devido a uma overdose de cultura que obtivera por causa dos seus excessos de leitura sobre a história de Sorocaba. Num diálogo bem humorado a comadre deixa escapar algumas vezes que o compadre já era seu “íntimo” de longa data. Analisando bem, há algo de Capitu em Dona Lazinha, assim como Escobar está para o compadre Pedro. Não quero dizer que isso seja uma verdade. Mas também não nos surpreenderia se ambos mantêm uma relação oculta, uma vez que infidelidade não escolhe época, condição social e sexo.

Desesperada por ajudar seu filho, D. Lazinha, a pedido de seu compadre Pedro, manda chamar um certo Pai Landinho, famoso pai-de-santo benzedor das redondezas. Se a entrada deste personagem é fictícia ou não, o fato é que ele também representa uma outra esfera social: os charlatões de má-fé, destes que nada entendem das curas espirituais e as utilizam de modo  nada cristão, a cuja finalidade é usufruir dos pagamentos de seus fiéis. Mas no caso do Dito Historiadô, o que Pai Landinho “cobra pelo serviço” são as fartas comilanças da mesa de D. Lazinha: pães, leitoas, doces de abóboras, frangos... Ah, bons tempos aqueles em que os falsos benzedores cobravam suas rezas apenas por um pedaço de pão!

  Já a figura do Dito, moço simples, analfabeto que nutria grande paixão pela leitura, aprende a ler sozinho, graças a seu esforço e seu sonho em ser um artista. Sim. O Dito me fez lembrar Jeca Tatu, imortalizado na obra de Monteiro Lobato. O cunho social da peça aparece subliminarmente neste ponto: o descaso com doenças e a situação da educação, então um dos nossos sérios problemas sociais. Ele revela a real situação do trabalhador rural, sem acesso a educação, sujeito ao analfabetismo e a toda sorte de doenças, sem que para isso se recorra a uma medicina mais acessível e decente. É evidente que em nossos dias muita coisa mudou (do fim do século 19 para cá) e hoje devido ao êxodo rural para os centros urbanos, o acesso à educação e a saúde são mais “fáceis”. Mas isso também não quer dizer que vivemos num Paraíso... Isto porque o Dito é a imagem do ser legado ao abandono pelo Estado, à mercê de enfermidades típicas dos países atrasados, da miséria e do atraso econômico. Condição nada romântica e utópica, como muitos escritores pretendiam moldar o caboclo brasileiro, nesta mesma época. Mas a vida do Dito muda radicalmente. Ele se cura. Se desperta do seu porre de cultura, do seu estado abobado e alucinado. Tem um sonho. Realiza. Vence. Então a figura do Dito se torna o símbolo da vitória do sonho sobre a miséria e a conquista de um lugar ao sol. Esta aí a mensagem.

Então entram em cena agora personagens reais, numa linguagem bem interessante para o teatro: o tragicômico. A peça abre uma vertente para narrar fatos verídicos e utiliza-se da história real de Juca Barro para se imortalizar. Saem a atmosfera do humor clownesco e entra o circo-teatro, ou seja na linguagem popular, o “dramalhão”.  Para o filósofo Aristóteles a tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, realizada por meio de uma linguagem enriquecida com recursos ornamentais, usados, separadamente, em diferentes partes da obra. A imitação se efetua com personagens que atuam com o recurso de piedade e terror para expurgar as paixões. Em uma tragédia há intriga, ações e fábulas, que favorecem a surpresa o suspense do espectador.

Juca Barro foi um homem muito rico que fora senhor de grandes fazendas de laranja. Um dia, apareceu em suas terras um certo Chico Vaiz com sua mulher Marica e uma filha de colo. Viúvo, Juca Barro mira seus olhos cobiçosos em Marica, que, mesmo muito pobre, possui um belo corpo e uma voz de sereia que seria possível ouvir de longe, quando se banhava ou lavava roupas no rio. Em um encontro furtivo à sobra de um monjolo, sedento pelo corpo da roceira, Juca Barro seduz Marica com promessas e presentes. E Marica, que nada tinha de matuta, muito pelo contrário, tinha consciência de sua beleza e sensualidade, usa-se de sua formosura cede aos desejos do patrão, sob a condição de lhe dar uma vida de rainha. A traição de consuma. Ambos então planejam a morte do roceiro Chico Vaiz, no monjolo, e é a própria Marica quem facilita o acidente. Mas Antonio Francisco Gaspar, autor que escrevera sobre este caso verídico, nos conta que ambos, Marica e Juca Barro, foram punidos pela justiça Divina. Não tardou muito para que Marica perdesse a filha, vítima da “saudade do pai” e o vilão, Juca Barro, pouco tempo depois, perderia o filho num acidente de carroça. Marica, viúva e abandonada, se definha no seu casebre afetada e consumida pela lepra. E Juca Barro, atormentado pela culpa, tinha visões apavorantes e a loucura torturava-o convulsivamente. Dentro de pouco tempo estava moribundo. Morreu em meio das mais terríveis aflições. Este momento da peça existe uma união do trágico e do cômico e faz com que o riso não saia livremente, porque deixa uma sensação de pena. A negação do positivo é a essência do trágico e do cômico e a tênue linha que os separa. A comicidade ingênua surge quando ela se apresenta como algo justo, bom e sensato. Por exemplo, a sátira à igreja e à sociedade que faz de Gil Vicente em A barca do inferno, quando nos apresenta o tema do juízo final de uma maneira cômica. No caso do Dito Historiadô se apresenta  no adultério e no crime.

Outro ponto delicado veladamente apresentado na peça esta no drama da situação do personagem Jeremias, o Curticeiro. Um homem bom e trabalhador, pai da única filha, a Jureminha, a cujo comportamento digamos pouco moral, fere os brios e a boa personalidade do pai. Escandalizado por constatar que a filha, então tida como recatada, na verdade nem era mais pura, Jeremias se entrega à bebida e rechaça a filha pra rua, que acaba se casando com o Dito, com quem supostamente a Jureminha teria rompido a castidade. O Curticeiro passa a viver bêbado, desgostoso e penalizado. Sua Jureminha, o lírio puro da inocência e da virtude atirado ao lodo. É o triste enredo do alcoolismo. Nada mais contemporâneo.


Entretanto, História Dito Historiadô, é, antes de mais nada uma peça de humor. Vale a pena analisarmos certos conflitos humanos, tão recorrentes em nossos meios sociais pelo ponto de vista do teatro e da comédia e por isto analisarmos nossas próprias fraquezas. É evidente que não se trata de levantar bandeiras ou apontar falhas da sociedade como um todo. Dito Historiadô é simplesmente uma contação de causos e histórias, tendo como pano de fundo a própria história de Sorocaba, até então adormecidas em nossas lembranças. É remontar aos tempos saudosos da rádio. É resgatar a seiva da nossa raiz. Ao acorde da viola e no bom texto adaptado, revivemos nomes de alguns mitos: Baltazar Fernandes, Monsenhor João Soares, Alzira Sucuri, Chimbica...  gente que fez a história de Sorocaba e esta presente na memória de qualquer geração.
É importante que se olhe Dito Historiadô sem preconceitos. É olhar, em cada personagem e em casa ato, um pedaço de nós mesmo e refletirmos um pouco mais sobre nossa história, nosso legado e nossa herança enquanto personagens do palco da vida. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário