Poucos, da atual geração de
sorocabanos, desconhecem, pelo menos de tradição, algumas passagens da história
de sua própria cidade. De quantas epopeias, fatos, tradições, lendas têm
registrado nos livros de nossos escritores e historiadores e destes avivados
muitas vezes à memória dos nossos avoengos e, por feliz e rara consequência,
saltado dos alfarrábios para os palcos do teatro.
História do Dito Historiadô, peça
teatral com texto de Ivone Martins e direção de Rodrigo Cintra, inspirado no
livro de Antônio Francisco Gaspar, é um importante mote para o sentido de
resgatar à memória sorocabana o registro da nossa história, tendo como pano de
fundo o regionalismo, as tradições rurais, a linguística, e sobretudo, um olhar
analítico sobre as relações humanas em nossos dias atuais.
A
peça começa já com uma pergunta no ar e então um suposto adultério surge
discretamente em entrelinhas. A personagem D. Lazinha, mãe do Dito, aparece
esbaforida na casa de seu vizinho, o compadre Pedro, padrinho do filho da
mesma. Dona Lazinha está angustiada por que seu filho havia dias estava em
estado catatônico devido a uma overdose de cultura que obtivera por causa dos seus
excessos de leitura sobre a história de Sorocaba. Num diálogo bem humorado a
comadre deixa escapar algumas vezes que o compadre já era seu “íntimo” de longa data. Analisando bem, há
algo de Capitu em Dona Lazinha, assim como Escobar está para o compadre Pedro. Não
quero dizer que isso seja uma verdade. Mas também não nos surpreenderia se
ambos mantêm uma relação oculta, uma vez que infidelidade não escolhe época,
condição social e sexo.
Desesperada
por ajudar seu filho, D. Lazinha, a pedido de seu compadre Pedro, manda chamar
um certo Pai Landinho, famoso pai-de-santo benzedor das redondezas. Se a
entrada deste personagem é fictícia ou não, o fato é que ele também representa
uma outra esfera social: os charlatões de má-fé, destes que nada entendem das
curas espirituais e as utilizam de modo nada cristão, a cuja finalidade é usufruir dos
pagamentos de seus fiéis. Mas no caso do Dito Historiadô, o que Pai Landinho
“cobra pelo serviço” são as fartas comilanças da mesa de D. Lazinha: pães,
leitoas, doces de abóboras, frangos... Ah, bons tempos aqueles em que os falsos
benzedores cobravam suas rezas apenas por um pedaço de pão!
Então entram em cena
agora personagens reais, numa linguagem bem interessante para o teatro: o
tragicômico. A peça abre uma vertente para narrar fatos verídicos e utiliza-se
da história real de Juca Barro para se imortalizar. Saem a atmosfera do humor clownesco e entra o circo-teatro, ou
seja na linguagem popular, o “dramalhão”. Para o filósofo Aristóteles a tragédia é a
imitação de uma ação elevada e completa, realizada por meio de uma linguagem
enriquecida com recursos ornamentais, usados, separadamente, em diferentes
partes da obra. A imitação se efetua com personagens que atuam com o recurso de
piedade e terror para expurgar as paixões. Em uma tragédia há intriga, ações e
fábulas, que favorecem a surpresa o suspense do espectador.
Juca Barro foi um
homem muito rico que fora senhor de grandes fazendas de laranja. Um dia,
apareceu em suas terras um certo Chico Vaiz com sua mulher Marica e uma filha
de colo. Viúvo, Juca Barro mira seus olhos cobiçosos em Marica, que, mesmo muito
pobre, possui um belo corpo e uma voz de sereia que seria possível ouvir de
longe, quando se banhava ou lavava roupas no rio. Em um encontro furtivo à
sobra de um monjolo, sedento pelo corpo da roceira, Juca Barro seduz Marica com
promessas e presentes. E Marica, que nada tinha de matuta, muito pelo
contrário, tinha consciência de sua beleza e sensualidade, usa-se de sua
formosura cede aos desejos do patrão, sob a condição de lhe dar uma vida de
rainha. A traição de consuma. Ambos então planejam a morte do roceiro Chico
Vaiz, no monjolo, e é a própria Marica quem facilita o acidente. Mas Antonio
Francisco Gaspar, autor que escrevera sobre este caso verídico, nos conta que
ambos, Marica e Juca Barro, foram punidos pela justiça Divina. Não tardou muito
para que Marica perdesse a filha, vítima da “saudade do pai” e o vilão, Juca
Barro, pouco tempo depois, perderia o filho num acidente de carroça. Marica,
viúva e abandonada, se definha no seu casebre afetada e consumida pela lepra. E
Juca Barro, atormentado pela culpa, tinha visões apavorantes e a loucura
torturava-o convulsivamente. Dentro de pouco tempo estava moribundo. Morreu em
meio das mais terríveis aflições. Este momento da peça existe uma união do
trágico e do cômico e faz com que o riso não saia livremente, porque deixa uma
sensação de pena. A negação do positivo é a essência do trágico e do cômico e a
tênue linha que os separa. A comicidade ingênua surge quando ela se apresenta
como algo justo, bom e sensato. Por exemplo, a sátira à igreja e à sociedade
que faz de Gil Vicente em A barca do inferno, quando nos apresenta o tema do
juízo final de uma maneira cômica. No caso do Dito Historiadô se apresenta no adultério e no crime.
Outro ponto delicado
veladamente apresentado na peça esta no drama da situação do personagem
Jeremias, o Curticeiro. Um homem bom e trabalhador, pai da única filha, a
Jureminha, a cujo comportamento digamos pouco moral, fere os brios e a boa
personalidade do pai. Escandalizado por constatar que a filha, então tida como
recatada, na verdade nem era mais pura, Jeremias se entrega à bebida e rechaça
a filha pra rua, que acaba se casando com o Dito, com quem supostamente a
Jureminha teria rompido a castidade. O Curticeiro passa a viver bêbado,
desgostoso e penalizado. Sua Jureminha, o lírio puro da inocência e da virtude
atirado ao lodo. É o triste enredo do alcoolismo. Nada mais contemporâneo.
Entretanto, História Dito Historiadô, é, antes de mais nada uma peça de humor. Vale a pena analisarmos certos conflitos humanos, tão recorrentes em nossos meios sociais pelo ponto de vista do teatro e da comédia e por isto analisarmos nossas próprias fraquezas. É evidente que não se trata de levantar bandeiras ou apontar falhas da sociedade como um todo. Dito Historiadô é simplesmente uma contação de causos e histórias, tendo como pano de fundo a própria história de Sorocaba, até então adormecidas em nossas lembranças. É remontar aos tempos saudosos da rádio. É resgatar a seiva da nossa raiz. Ao acorde da viola e no bom texto adaptado, revivemos nomes de alguns mitos: Baltazar Fernandes, Monsenhor João Soares, Alzira Sucuri, Chimbica... gente que fez a história de Sorocaba e esta presente na memória de qualquer geração.
É importante que se
olhe Dito Historiadô sem preconceitos. É olhar, em cada personagem e em casa
ato, um pedaço de nós mesmo e refletirmos um pouco mais sobre nossa história,
nosso legado e nossa herança enquanto personagens do palco da vida.
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