quinta-feira, 9 de junho de 2011

O Punhal

O amor tem sido entre os homens a fonte maior da morte.

As suas vítimas foram todos os que nasceram e a série das suas desgraças abrange a própria eternidade. Este, cuja história vou contar, nutriu-se de amor como os organismos se nutrem do mesmo ar. Não era propriamente um homem: todo ele era um insaciável coração. Amava em sonhos, no trabalho, na menor viagem de bonde, fosse a quem fosse, numa atormentada e insaciável sede de amor. Todas as ingênuas, que acreditavam na sua paixão, enganaram-se dolorosamente. Quanto, porém, mais iludia mais pretendentes apareciam para a sua ilusão. Este é um dos pontos fracos da mulher: o donjuanismo exerceu sempre uma grande fascinação sobre a alma feminina. Quanto mais sabem as mulheres que um homem é sedutor, é falso ao que promete, tanto mais é requestado por elas. Há um certo orgulho em ser vítima de um famoso dominador. Observa-se isto no próprio cinema, cujos artistas mais amorosamente falsos e audaciosos são aqueles que o público feminino mais aplaude. O nosso herói tinha 25 anos só e mais de duzentas mulheres recordavam ainda glorificadas os momentos em que se sentiram vencidas pela força irresistível do seu amor. Uma, porém, havia, que pela segunda vez se queimava nas ardências da sua paixão __ a loura e nervosa Beatriz. Aos 18 anos deixou-se arrastar pelo dominador do seu coração. Acreditou em todas as mentiras que o amor emprega _ sempre as mesmas, para os mesmos efeitos, porque as mulheres em todas as épocas, em todos os lugares, foram também sempre as mesmas. Acreditou ingenuamente e depois, se quis continuar a merecer da sociedade o respeito que se costuma chamar de consideração, teve que ligar o seu destino de moça nascida para melhor existência, ao destino de um qualquer, o primeiro que por um dinheiro qualquer deixou convencer. Como acontece em casos semelhantes, no íntimo de Beatriz um punhal ficou sempre afiado e ameaçador, esperando o dia em que a vingança lhe permitisse cravá-lo no homem que lhe fora fatal. Os anos sucederam-se muitas vezes e por esta Sorocaba toda muitas Beatrizes tiveram a mesma sorte, afiaram o mesmo punhal, mas nenhuma ousara ainda atravessar aquele coração, aquela fornalha, aquele vulcão de amor que o Rubens trazia no peito. Uma tuberculose providencial libertou a moça do marido que o pai lhe comprara e de novo só com o seu coração, soltou-o pela vida, na ânsia de encontrar um grande bem que viesse saciar-lhe a fome de amor. Há um fatalismo de que não conseguimos fugir: Beatriz, com o físico realçado pelo negro do luto, encontrou-se, na primeira semana de viuvez, com Rubens, realçado também pela força completa dos seus trinta anos exuberantes. Aquele antigo punhal da vingança derreteu-se na alma da moça, crescendo em seu lugar a grande paixão que havia dedicado outrora ao rapaz irresistível. Era uma vitima que tornava. Não tinha desculpa nenhuma, porque deveria conhecer o perigo a que se expunha. E todos aqueles dias de paixão ardente de anos atrás se renovaram, com uma intensidade ainda maior, porque, para aumentá-la havia cinco anos de saudades e de ausência atormentando-os. Beatriz tornou a crer nas promessas de Rubens e, apesar da lição recebida, repetiu as mesmas loucuras dos seus dezoito anos. A sociedade agora nada mais tinha que ver com o seu procedimento, mas quando, pela centésima vez ouviu do moço que ele não se casaria mesmo, um grande ódio se apoderou do seu coração. Nele se haviam concentrado o rancor de duas seduções, a vingança de suas felicidades transtornadas __ a da sua mocidade iludida e da sua viuvez ludibriada. O velho punhal dos românticos transformou-se na feiúra do revólver moderno, seguro e prático. Aquele vivia dentro do coração sentimental da jovem. Este passou a pesar na bolsa da mulher prevenida e determinada.

Janeiro surgiu quente, mas festivo. Trouxera mais uma esperança para Rubens: fora promovido a gerente da casa comercial onde trabalhava, graças à intervenção da patroa, mulher formosa que há muito se enroscara nos filtros do rapaz. Para Beatriz, entretanto, o novo ano trouxera uma desesperança apenas e uma derrota a mais: estava tuberculosa.

Procurou o amante. Propôs-lhe um longo passeio pela noite afora, num bairro distante. O destino atuava: ele aceitou o convite e partiram. Numa rua silenciosa o deserta, puseram-se a passear.

___Rubens, diga-me, pela última vez: você casa-se comigo?

___Nem pense nisso! Quando você tinha 18 anos eu não a quis, vou aturá-la que esta velha e doente?

___... velha e doente! Você disse bem: estou velha e doente por sua causa, pelas dores e angústias que me fez sofrer...

___Deixa-se de romantismos. Viemos para passear ou para quê?

___Você veio para morrer e eu para matar...

___Então você pensa que vou ter medo de uma tuberculosa?

E Rubens, arcando-se todo de risos irônicos, deu três passos à frente de Beatriz. A posição era propícia: a bolsa abriu-se; aquela mão de mulher empunhou o revólver e o silêncio quebrou-se com estrépito do tiro.

Na delegacia:

___Quem é a senhora?

___A última vítima de um sedutor...

___Seu nome?

___Mulher apenas!

___Por que o matou?

___Para vingar todas aquelas que beberam em silêncio as lágrimas das suas desgraças.

___Com que o matou?

___Com um tiro: na bala havia concentrada a vingança de todas as mulheres seduzidas e foi a violência das suas paixões que impulsionou o meu braço vingador.

___Não tem remorsos?

___Remorsos,não! Tenho pena, porém!...

___Pena?

___Sim! Dessas que ainda esperavam a sua ilusão, que eu desfiz...

De fato, no necrotério, entre prantos e soluços, uma havia que lamentava:

___Que tristeza! Era tão lindo e havia marcado para amanhã uma visita ao meu marido...


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