terça-feira, 18 de outubro de 2011

O Lenço Escarlate




A noite vinha e o jardim era já uma grande sombra azulada. Marcos encontrou Dulce a um canto, num banco de pedra, olhos fixamente abertos, como se uma visão os ocupasse, imobilizando-os.
O túmulo, da prima abria-se hiante e escuro dentro da sua memória e ela via desaparecer naquela cova, a companheira de infância.
___Em que meditas? __ perguntou-lhe Marcos.
___Ah! É você?...
___Sou eu; não me conheces?
Um largo arfar de tranqüilidade estremeceu-a toda e ele sentiu nas suas mãos, as mãos convulsas de Dulce que apertavam.
___Que é que tens?
___Nem eu sei, medo, pavor, pressentimentos, tristezas, angústias...
___Já sei: veio ao cemitério e está impressionada. Olha, nada melhor que a prece para acalmar um espírito agitado. Reza, ora, pede a Deus por ela e ficarás tranqüila.
Dulce, incrédula:
___Já orei muito. É impossível esquecê-la e depois, não é a lembrança da minha Ana, que me atormenta. O que me angustia, é o enigma do legado que me deixou.
___E qual foi esse legado? Poderia vê-lo? Talvez que o explique a minha ciência de cabalísticas e de simbolismos.
Do corpete de seda branca, na réstia do lustre que ardia  no alpendre, tirou, com a mão nervosa, um minúsculo lenço de seda e, espalmando-o ao olhar do companheiro, apontou-o impressionada uma das pontas. Era de seda escarlate o lenço, e trazia nessa extremidade, bordado a preto, um punhalzinho gotejando sangue. Eis o enigma.
___Ora... que é que tem isto? Quer ver neste relevo de seda um horóscopo fúnebre? Não sabes que em superstições tudo é às avessas? Sossega. O que te agita é a impressão do cemitério, é esta hora da noite, a solidão deste lugar. Amanhã rirás dos teus  pavores, vendo tudo por outro prisma.
E o primo foi levando-a para dentro da casa, gracejando com a sua fraqueza de nervos, a fim de distraí-la. Dentro, rodeados da família, Marcos continuou a pilheriar, comunicando a todos os pavores da coitadinha que nascera nervosa e impressionável com tão pouco. O tempo depois os separou e mais tarde, as paredes  daquela casa ainda maior distância interpuseram entre eles. Soube dos seus estudos nas escolas, da admiração que por toda parte despertava a sua formosura e de nenhum imprevisto foi o convite que um dia chegou a Marcos para ser o futuro padrinho das suas núpcias com o jovem e lindo Barão de Itaparica. Apenas alguém objetou, por acaso:___ “E em que daria  a fúria da Marquesa de Maracá?”
Marcos sempre ignorou essa rivalidade e esse amor.
Cresceu ainda mais o tempo e, quando menos esperava, na curva de uma rua, como um relâmpago negro, se fosse possível tal fenômeno, o crepe de D. Amância roçou-lhe a fronte:
___Que é isto? De luto? Quem  morreu?
Secamente, com a voz amarrada na garganta, respondeu:
___Ela!
___Dulce? Morreu?
___Mataram!
___Quem?
___A rival!
O crepe de D. Amância projetou-lhe uma grande sombra nos lhos e ele achou, num canto de jardim, na sombra perfumosa da noite. No clarão do lustre que ardia no alpendre antigo, apareceu-lhe ainda nervosa, trêmula, agitada, muito branca, espalmando ao seu olhar o lenço escarlate. Marcos desceu errante pelas ruas e só se deteve aos pés do túmulo querido: o epitáfio dizia apenas: “Dorme em paz!”
Por baixo do nome, esculpido no alvor do mármore, lá estava o lenço escarlate. Na ponta, um punhal de pedra rubra gotejava sangue.  

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